O que é aprender a ler ?

Jean Foucambert


1980 é o ano da leitura. No entanto, todo mundo sabe, desde já, que nenhuma decisão importante será tomada ; pois não existe nenhuma boa decisão para se tomar. Tudo leva a crer que uma profunda evolução está ocorrendo. É considerável a defasagem entre, por um lado, as idéias e práticas majoritárias, herdeiras do passado (cuja ineficiência é cada vez mais problemática) e, por outro, os saberes novos, mal difundidos, criadores de práticas desconcertantes, minoritárias, porém já portadoras de soluções (ainda que a escola não esteja pronta para adotá-las).
Seria tão perigoso escolher o statu quo quanto a mudanza ; e, no entanto, não há nenhuma possibilidade de compromisso entre ambos.
Com efeito, contrariamente ao que André Inizan afirma, não houve nenhum acordo mínimo no seminário e no colóquio. Ainda que as mesmas palavras tenham sido eventualmente utilizadas, elas encobriram pressupostos muito diferentes. O recuo histórico pode ajudar a entender a clivagem atual.
Entre 1960 e 1970, a escola confrontou-se com um problema de leitura que não conseguiu superar. Até essa data, o saber-ler era quase que unanimemente confundido com a possibilidade de se atribuir um significado ao escrito, transformando-o em oral — um pouco como quando se acreditava que o conhecimento de uma língua estrangeira passava pela possibilidade de entender uma mensagem graças à tradução, e de expressar-se por meio da versão. Quando, porém, as exigências da comunicação aumentam, deve desenvolver-se uma atividade de natureza totalmente diferente, pois a mensagem é elaborada ou tratada diretamente na língua estrangeira.
Vinte anos atrás, o saber-decifrar ainda podia parecer suficiente para 80% da população ; os outros, que continuavam estudando, tornavam-se (ou, melhor, tornaram-se) leitores por motivos alheios ao ensino a que foram submetidos.
A vontade de democratização do collège tornou claro que saber-decifrar não podia confundir-se com saber-ler —e os professores ainda não se refizeram do susto... As diferenças de eficácia no uso da escrita variam comumente numa escala de 1 a 5 : mais ou menos como se um pedestre e um ciclista decidissem passear juntos ; ainda que empreguem o mesmo vigor e façam o mesmo esforço, não percorrem a mesma distância.
A afirmação democrática do tronco comum tornava necessário mudar o ensino da leitura ; escolheu-se apenas melhorá-lo. Procurou-se a solução no aperfeiçoamento dos métodos existentes, quando ela estava no abandono desses métodos ! Para um problema diferente, uma solução diferente : a leitura não está além da decifração ; desde o início, ela tem outra natureza.
Desconsidero o fato que durante muito tempo pediu-se à lingüística algo que ela não podia dar. Ela se preocupa em descrever a língua, mas a leitura é um ato ; é algo como esperar que o químico que estuda a água dê informações sobre natação. Assim, os pedagogos aproveitaram da lingüística aquilo que não lhes perturbava o projeto ; pelo contrário, o reforçava. Na escola, a leitura é presa de um corpo, apesar das nuanças, fundamentalmente homogêneo, que combina os pressupostos históricos da decifração com a descrição rigorosa das correspondências entre o oral e o escrito, feita pela lingüística. Quanto menos se resolver o verdadeiro problema, o da leitura, maior será o refinamento na sofisticação e no charlatanismo.
Paralelamente, porém sem relação com a escola, têm-se desenvolvido pesquisas sobre a leitura, graças a fisiologistas, psicólogos, profissionais de informática, editores, psicolingüistas, pesquisadores da formação de adultos etc. Esses trabalhos internacionais, há alguns anos, chegaram a uma descrição das estratégias às quais o indivíduo recorre para construir uma informação a partir da escrita, descrição que torna definitivamente vã a esperança de formar leitores a partir da correspondência oral-escrito.
Todos pressentem a necessidade de se abandonar a trilha conhecida e de se lançar numa aventura um tanto preocupante.
Afinal, não existiria uma maneira de fazer, antiga, que permitisse mudar sem mudar de verdade ? Talvez se adicionando um pouco de gesticulação aqui, um pouco de canções rimadas acolá, um pouco de fonética, um pouco das tradicionais e já comprovadas frases de cartilhas, umas falas aqui, mais falas ali...Não ? Realmente... ? Então, será preciso dar o salto! Só que a mudança é profunda e supõe o questionamento dos conceitos mais usuais : os parâmetros empregados na avaliação do saber-decifrar não têm vez no saber-ler.
No estágio atual das coisas, as discussões sobre a escolha dos métodos são, ao mesmo tempo, obsoletas e prematuras. A escola precisa de uma reflexão muito mais fundamental, precisa entender o que é a leitura ; só então será fácil e frutífero escolher. Acho possível provocar nos professores e nos pais uma tomada de consciência sobre o que é a leitura, a partir de sua própria prática, para derrotar as falsas noções que continuam sendo utilizadas como referências para a ação educativa escolar e familiar.
A leitura é atribuição voluntária de um significado à escrita
Todos sabem que há diferença entre ver e olhar, ouvir e escutar... Ler não é apenas passar os olhos por algo escrito, não é fazer a versão oral de um escrito. Quem ousaria dizer que sabe ler latim só porque é capaz de pronunciar frases escritas naquela lengua ?
Ler significa ser questionado pelo mundo e por si mesmo, significa que certas respostas podem ser encontradas na escrita, significa poder ter acesso a essa escrita, significa construir uma resposta que integra parte das novas informações ao que já se é.
Um poema ou uma receita, um jornal ou um romance, provocam questionamentos, exploração do texto e respostas de natureza diferente ; mas o ato de ler, em qualquer caso, é o meio de interrogar a escrita e não tolera a amputação de nenhum de seus aspectos.
Controlar a leitura significa cumprir totalmente o seguinte processo :
Relacionar a satisfação proporcionada pela resposta com o custo da pesquisa realizada no texto. Controlar a leitura significa obter informação sobre o questionamento inicial, discutir as estratégias de exploração, medir o caminho percorrido ; significa também formular um juízo sobre o escrito. A leitura só pode ser controlada completamente dessa maneira pelo leitor ; de fora, um observador pode apenas fornecer indicadores e dar uma opinião externa.
Um grande número de professores e pais acreditam estar avaliando a leitura das crianças quando apenas medem um aspecto muito particular, hipertrofiado pelo ensino e que, na verdade, está ausente dos comportamen­tos de leitura. No entanto, a preocupação com aquilo que se costuma avaliar torna-se, por sua vez, o próprio objeto do ensino e impede o desenvolvimento de autênticas estratégias de leitura.
Ler é explorar a escrita de uma maneira não-linear
Por um sem-número de motivos que não desenvolvo aqui, jamais se chega ao significado de um texto pela soma do sentido das sucessivas palavras que o compõem. Por razões ainda mais evidentes, não se aprende o idioma materno ou uma língua estrangeira identificando-se cada elemento dessa língua. A criança aprende a falar porque, a partir de uma situação que a envolve, atribui sentido a uma mensagem : desprezando boa parte dos elementos expressos, ela atribui sentido aos que considera mais significativos. Com base neles elabora, então, hipóteses sobre outros elementos, até ali desconhecidos. O mesmo processo ocorre quando a criança explora a escrita para atribuir-lhe sentido. Esse procedimento é impossível, porém, quando se privilegia a passagem pelo oral. No oral é obrigatória a pronúncia das palavras na ordem em que se apresentam. Não se podem pular elementos desconhe­cidos, nem voltar atrás, para palavras já lidas, cujo significado só foi esclarecido mais adiante. Nem se pode inferir as partes a partir do todo. Esse processo de exploração do texto só é possível quando se corre o risco de errar e quando se acessa o todo antes de cada elemento. Pais e professores consideram um erro de leitura pronunciar “sapato” onde aparece “calçado”. Que eles expliquem, primeiro, por que a criança não disse “calça” ou “cadeira” ou “rinoceronte”...
Aprender a ler é, primeiro, adivinhar e, depois, cada vez mais acertar
Desde o primeiro dia, o desenvolvimento cognitivo da criança se opera pela inferência do sentido de certos elementos de uma situação fortemente envolvente. A grosso modo, pode-se afirmar que, a partir das situações nas quais interage, a criança cria um sistema provisório que lhe permite antecipar índices pertinentes para a classificação, a denominação, a ação... Os índices escolhidos para distinguir um cachorro de um gato, para isolar seu pai de todos os outros homens com bigode, são “operacionais” com relação ao seu sistema atual e ao seu projeto. As defasagens, os fracassos, os conflitos ião levá-la a ajustar progressivamente esse sistema.
Aos cinco anos de idade, o que a criança sabe fazer melhor — e que o adulto não consiga mais sequer imaginar ! — é criar significado.
Tudo o que ela entende, tudo o que conhece foi construído dessa maneira por ela ; nada lhe foi dado por ninguém. Mergulhada num meio de fala não-francesa, a criança é capaz de criar significado e, em poucos meses, falará inglês, por exemplo. Ninguém se surpreende que uma criança entenda uma palavra que jamais encontrou e que não pode relacionar com sua língua materna ! Pois é isso o que ela faz desde o seu nascimento. E faz o mesmo com a escrita de sua vida, de sua rua, de sua televisão... Está pronta, portanto, para continuar na escola com a escrita que lhe é apresentada. Mas, atenção! Aqui, a coisa é diferente : não se pode adivinhar, é preciso ligar a escrita ao que já éconhecido, aplicando-se um código que lhe é dado ou que ela descobre através de algumas frases privilegiadas. Por quê ? Porque não se sabe e não se controla como uma criança pode atribuir sentido a uma palavra que jamais viu... Ora, bolas ! Mas há cinco anos ela faz isso com o que ouve ! Trata-se de um perito!
A escola prefere utilizar outros caminhos...
Ler é tratar com os olhos uma linguagem feita para os olhos
Ler não consiste em encontrar o oral no escrito, nem mesmo nos países em que a escrita, por motivos muito pouco relacionados à leitura, tem uma correspondência aproximativa com o oral. Tanto em nosso país como na China, a escrita é a linguagem que se dirige aos olhos ; funciona e evolui para a comodidade dessa comunicação visual. A correspondência aproximativa com o oral é uma característica suplementar, que não afeta, porém, os processos de leitura.
Pode-se sempre traduzir do inglês para o francês, mas não é passando pelo francês que uma pessoa bilíngüe entende o inglês. Ao justificar essa passagem pelo oral no aprendizado da leitura, não se está pretendendo que é mais difícil distinguir com os olhos do que com os ouvidos? Não se está afirmando que se pode abrir mão da memorização das formas visuais, já que sempre é possível encontrá-las a partir das formas orais ?
Na escola, prefere-se explorar a língua escrita sem apelar para a memória visual, centrando fogo no domínio de um código de correspondência muito aproximativo ; depois lamenta-se que as crianças não saibam ler e cometam erros de ortografia!
Confunde-se oralização, leitura e leitura em voz alta
A oralização é a atividade que permite constituir uma cadeia oral a parfir do escrito. Na pedagogia da leitura, essa oralização supostamente permite atribuir sentido ao que ainda não tem. É fácil mostrar que isso é muito improvável. Três palavras, como “retém, balbuciam, quociente” só podem ser oralizadas depois de reconhecidas e compreendidas. Esse recurso à oralização para atribuir sentido a uma palavra nunca vista, no adulto (e na criança, se nós não insistíssemos que ela o usasse) é a última de uma série de estratégias ; e, na verdade, nunca é utilizada, por ser incerta demais.
A leitura é a atribuição de um significado ao texto escrito : 20% de informações visuais, provenientes do texto ; 80% de informações que provêm do leitor ; o resto é informação sonora...
A leitura em voz alta é um comportamento enxertado à leitura, defasado em alguns segundos : é a opção de traduzir oralmente o que já foi compreen­dido na leitura. Não se latim em voz alta ; no máximo, oraliza-se. A mensagem oralizada pode estar muito próxima à mensagem escrita ; mas, na maioria das vezes, é diferente, seja pela introdução de uma prosódia, de uma respiração não assinalada no texto, seja pela mudança de certas palavras, pelo salto de passagens, pela busca de informação no início do texto, pelo resumo de certas frases etc.. Essa leitura em voz alta não é muito diferente de uma tradução. Em todo caso, é uma interpretação ; o leitor faz mais ou menos o mesmo que uma pessoa bilíngüe : ela diz em francês o que compreende do que em inglês. Entre os olhos e a boca está o significado. A leitura em voz alta e muito mais complexa do que a leitura e é difícil imaginarmos como ela poderia propiciar que alguém aprendesse a ler...

E o código ?
Código é o nome abusivamente atribuído ao sistema abstrato de corres­pondência que se acredita poder estabelecer, num determinado ponto, entre a grafia de uma palavra e sua pronúncia. A escola supõe que, ao inculcar na criança esse sistema acabado, faz dessa criança um leitor.
Para falar, o adulto necessariamente elaborou uma gramática do oral ; mesmo que não formule esse sistema de regras inferidas de sua prática, é nele que o adulto reinveste para gerar mensagens que nunca ouviu. Nenhum adulto, entretanto, teria a idéia de ensinar tal sistema a um recém-nascido para torná-lo um falante ! Além disso, a criança de quatro anos que, no embalo do jogo, distingue a carta “Você ganhou duas fichas” da carta “Você perdeu duas fichas”, elaborou um sistema de índices pertinentes a seu projeto. Pode-se até discuti-lo com ela e constatar que o que a guia nessa distinção não é a marca escrita do que ela ouve. Quando encontra “Você perdeu duas fichas”, por razões visuais ela precisa reorganizar sua apreensão de índices.
É um erro acreditar que uma palavra nova é simplesmente somada às que a criança já conhece ; na verdade, a palavra nova obriga todo o sistema a se reorganizar. Por extensões e conflitos, por ensaios e erros, por equilíbrios e questionamentos, a criança elabora um sistema que explica, teoriza e organiza suas práticas de leitor. Assim como o adulto, a criança pode dominar o sistema teórico correspondente a sua experiência apenas. E esse sistema que levará — progressivamente, porém, e através do confronto com a teorização do oral — a um sistema mais real da língua da qual o “código” não é senão uma parte. Mas não antes dos doze ou quinze anos. E desde que ela já saiba falar e ler...
Na verdade, o problema do código remete à relação existente entre aprendizado e ensino, na qual fica evidente a necessidade dos mesmos questionamentos. Como e quando a criança aprende ? Só quando e apenas por que é ensinada ? Propõe-se a ela que reinvista seu novo saber em situações reais, sem simulações ? Aplicam-se “instrumentos” necessariamente diferentes das intervenções usadas para ensinar-lhe?
Essa reflexão, inseparável daquela sobre a leitura, leva a transformações muito mais radicais da escola, que solapam as crenças de alguns. Sem dúvida, indefensáveis no plano teórico, certas posições pedagógicas sobre leitura, podem ser interpretadas como temor de questionar a priori muito sensíveis. Ocorre o mesmo com o estatuto da criança, com o estatuto do saber. Se é verdade que não há como aprender se não for lendo, muitos valores seguros pelos quais vivemos podem perder seu brilho...
No início deste artigo escrevi que neste momento nao podia haver decisões oportunas para ajustar a atual correlação de forças. No entanto, são desejáveis medidas que permitam o amadurecimento das idéias e o melhor posicionamento dos professores, para que façam suas próprias escolhas. Os problemas de leitura têm causas muito profundas, mais profundas do que a própria escola, e as evoluções serão necessariamente precárias e lentas. Até as medidas aparentemente mais positivas não surtirão efeito se não proporcio­narem, primeiro, o domínio da mudança por seus artesãos.

Na formação dos professores
Sem falar nas medidas gerais para a formação permanente (inicial e contínua), que ajudariam os professores a viver com as crianças no meio social, ao invés de confiná-los à regência das aulas na classe, pode-se indicar eixos específicos para a leitura.

Fornecer informação aprofundada sobre leitura :
Confundiu-se a descrição dos métodos pedagógicos com a informação sobre leitura. Os professores são profissionais que saberão fazer as escolhas que lhes convêm desde que tenham acesso à informação teórica que lhes está faltando hoje em dia.
As pesquisas internacionais sobre os processos psicológicos e fisiológicos da leitura, bem como os estudos de psicolingüística permitem traçar um quadro, ainda provisório, porém muito coerente, do leitor e do modo como tornar-se leitor. A Associação Francesa pela Leitura coordena atualmente a elaboração de uma bibliografia sobre esses trabalhos e seu colóquio de fevereiro de 1980 esboçou, de maneira convincente, o que pode ser a contri­buição fundamental das pesquisas para a reflexão dos pedagogos.
É indispensável que o currículo da formação inicial dos professores e os estágios de formação contínua dediquem espaços significativos a essa infor­mação, que está disponível, porém não é divulgada.

Dar uma formação de leitor :
Exige-se dos professores de educação física um nível alto de desempenho, para que sua reflexão se apóie na teorização de sua própria experiência. O mesmo deve ocorrer com os professores do ensino fundamental. Estágios para treinamento e aperfeiçoamento da leitura permitirão que os professores entendam melhor os processos envolvidos nela e no seu aprendizado ; com base nessa sua prática de leitura, eles poderão escolher as melhores interven­ções de ensino junto às crianças. Muitas das perguntas angustiadas sobre o que deve ser feito quando não se ensina mais a oralízação deixam de existir quando os próprios professores dominam tais aspectos técnicos.

Tornar conhecidos os diferentes textos disponíveis :
A escola deve ajudar a criança a tornar-se leitor dos textos que circulam no social e não limitá-la à leitura de um texto pedagógico, destinado apenas a ensiná-la a ler. Então, é preciso conhecer esses escritos sociais ! A formação dos docentes deve priorizar o conhecimento sobre os escritos utilizados pelas crianças, bem como a observação das estratégias que as crianças utilizam, quer diante dos programas de televisão, dos textos da rua, da publicidade, quer diante dos jornais, das histórias em quadrinhos, dos manuais de instrução, dos documentários, dos álbuns, da ficção etc.. Deve-se almejar, pelo menos, uma formação comparável à dos bibliotecários especializados em publicações para a juventude, sem mencionar sua permanente atualização.
Evidentemente, o professor do ensino fundamental deve ser um perito em textos para crianças, o que evitará a escolarização desses textos — poisa leitura não é tarefa apenas da escola. É por isso também que a formação dos professores deve incluir contatos com os pais, com bibliotecas de bairro e de empresa, com associações, de maneira a estabelecer intercâmbio entre as ações de informação e formação. Essas ações já existem em certas escolas normais, o que comprova que elas são possíveis. Devem ser estendidas, aprofundadas e sistematizadas, pois a leitura não é uma “opção” es colar. Não há dúvida de que os profissionais partilharem a informação teórica fundamental, resultante das pesquisas em curso, é o meio mais rápido de modificar as práticas pedagógicas. As práticas atuais são mantidas apenas porque joga-se habilmen­te com a ignorância e com a culpa.
No nível geral da escola
Não é na sala de aula, mas no estabelecimento (melhor ainda, nas estruturas comuns ao jardim de infância e à escola elementar) que se situam as modificações mais desejáveis.

Definir uma política coerente para o ensino fundamental :
Definir o saber-ler, definir os meios para sua avaliação, propor as estratégias a serem implementadas, assegurar a coerência e o acompanhamento durante um período de seis anos — essa política para a leitura é de responsabilidade da equipe docente, em seu diálogo com o meio circundante.
Assim, é possível usar melhor os meios materiais e as competências de cada um, facilitar os avanços por meio de ações de formação, sem arriscar-se numa aventura e sem constranger os indivíduos. Isso implica em lançar-se numa evolução que se sabe longa e que deve ser coordenada na escola, sob pena de ser perigosa. Significa ainda assumir a responsabilidade coletiva de situar sua prática individual num processo de conjunto...

Criar um centro de circulação e produção :
A biblioteca-centro é esse local coletivo de circulação e produção da informa­ção, de animação e consulta da escrita.
Com uma classe a menos do que o número de docentes da escola e com o livre acesso das crianças à biblioteca, permite-se que o professor que não está regendo uma classe esteja disponível para diversificar e ampliar os encontros das crianças com a escrita e os atos de leitura daí resultantes, bem como para coordenar as ações individuais que constituirão a política geral da escola — e essa responsabilidade pode mudar a cada ano.
A criação de uma biblioteca-centro-de-documentação é um passo tam­bém em direção à reorganização da escola em bases diferentes da atual equação :
1 professor = 1 sala de aula = 1 grupo permanente de crianças com a mesma idade, reunido durante um ano.

Criar dois ciclos de três anos :
No nível da escola, uma política global deve substituir a sucessão das seis séries do ensino fundamental (De 6 anos a 11 anos) por dois ciclos de três anos, sem qualquer possibilidade de bifurcação ou repetência dentro de cada ciclo. Essa nova organização supõe :
a) a definição de objetivos a atingir no final desses ciclos ;
b) a rejeição de uma progressão no ensino ou de um ritmo pré-estabelecido de aquisição ;
c) a opção pela heterogeneidade, que só tem sentido se predominarem as interações entre as crianças ;
d) a busca por uma individualização nas intervenções de ensino.
Essa organização por ciclos pode se dar se um docente acompanha um grupo de crianças durante três anos ou se convivem no mesmo grupo crianças das três faixas de idade.
Em cada escola, essas medidas não supõem meios especiais, ainda que certas derrogações facilitem sua implementação. Não constituem também mudanças que comprometam irremediavelmente o futuro, pois abrem os caminhos que a escola deverá percorrer gradativamente, mesmo que para outros domínios além da leitura.

Ao nível da sala de aula
Chegamos à escolha mais precisa das ações pedagógicas. Estas devem ser inventadas a partir a reflexão coletiva da escola sobre o que é a leitura e o que é o aluno.
Esse esforço de invenção pode ser ancorado na análise crítica das práticas atuais. Reproduzo, pois, a conclusão pedagógica de Frank Smith em seu livro Cornment les enfants apprennent à lire.

As observações dos psicolingüistas indicam pelo menos 12 maneiras simples de tornar difícil a aprendizagem da leitura :

1. Estabeleça como meta o domínio precoce das regras de leitura.
2. Cuide bem para que fonética seja aprendida e utilizada.
3. Ensine as letras ou as palavras, uma a uma, certificando-se de que cada letra ou palavra foi assimilada antes de passar para a seguinte.
4. Defina como objetivo principal uma leitura palavra por palavra perfeita.
5. Não deixe as crianças adivinharem ; pelo contrário, exija que elas leiam com atenção.
6. Procure evitar de todas as maneiras que as crianças errem.
7. Dê um feed-back imediato.
8. Detecte e corrija os movimentos incorretos dos olhos.
9. Identifique os eventuais disléxicos e trate-os o mais cedo possível.
10. Esforce-se para que as crianças apreendam a importância da leitura e a gravidade do fracasso.
11. Aproveite as aulas de leitura para melhorar a ortografia e a expressõo escrita ; insista também em que os alunos falem a melhor língua possível.
12. Se o método utilizado não lhe satisfizer, tente outro. Esteja sempre alerta para achar material novo e técnicas novas.”

Artigo publicado em l'Éducatíon, 22 de maio de 1980. In “A leitura em questão”, de Jean Foucambert, editora Artmed.
 


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